Última página de caderno

Quero despreocupar-me, entender que consequência é possibilidade, não obstáculo. Arriscar, igual a gente faz na última página do caderno: testa a caneta que parece estar falhando, e ela volta a escrever. Tenta desenhar uma pessoa, mas só saem alguns palitinhos tortos, aí a gente rabisca por cima ou arranca a folha e joga fora. Mas também nem por isso deixa de rabiscar. De riscar. De arriscar. De tentar achar o que nos faz bem, se é que isso existe plenamente em algum canto dessa vida. Mesmo assim, apesar da folha arrancada, o caderno continua tendo sua última página, sua tela de rascunhos, seu quintal de coragens, de medos, de dúvidas.

Imagina se só existissem “primeiras páginas”, onde a gente escreve bonito com uma letra forçada, que não é a nossa, só pra parecer que tem algo começando bem, começando diferente, começando a mudar. E muda - só para pior. A letra vai ficando mais feia, vai dando preguiça de manter aquela boa imagem. Tem gente que não gosta de mostrar o final do caderno pra ninguém, acho que é porque é meio que como funciona com a vida da gente. O início, superfície, é nossa cara de paisagem, a boa imagem que toda manhã a gente se força a passar pra evitar que nos perguntem o que é que temos, e pra evitar aquelas respostas “não é nada”, que dói mais pra gente que sabe que está mentindo do que pra quem ouve e sabe que é mentira. Aí as páginas vão sendo passadas pra trás, vai ficando longe aquela capa bonita, e tudo vai ficando mais a cara do que a gente é por dentro. 

Aquelas linhas que vem impressas pra tentar orientar a gente já perderam o sentido, eu as preferia longe dali, ou então retorcidas, erradas, pra se adequar à dificuldade que é a gente. A gente agente de ser. De ser não como “pode ser”, mas de ser como a alma da gente pede, como o que o coração reclAma, suplica, meio em silêncio, meio em sem-risos. Não fala muito porque nasceu com medo, mas é ele quem mais quer nosso bem. E o racional da gente não abre mão de decidir. Decidir errado, nunca de ceder ao mapa da felicidade a decisão dos rumos, dos prumos.

É, vou ver se mando uma carta para o senhor impera-dor da razão, ver se o convenço. Ver se o convenço de que minhas linhas não são preenchidas com razão, mas escritas aos trancos, ao ritmo do que o coração impera, ao som das letras que circulam por ele, oxigenando o refrão. É o que acontece nas primeiras páginas: tentamos imperar ritmo ao que circula do coração, forçando as letras para que pareça uma bela história. Letras bonitas que escrevem o vazio do que não é sincero. Não adianta. Logo ele deixa de caber em linhas. Transborda e pulsa letras arrítmicas de uma história real. De novo, a consequência é possibilidade, não obstáculo. Letras bonitas não deveriam moldar o ritmo da minha história. Porque não adianta, logo o coração deixa de caber em linhas, ou de acabar em linhas, quando não bastar sentir demais.

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